Daniel Carvalho, a Katylene

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Daniel Carvalho era a definição de uma tempestade perfeita, a começar pelo duplo sentido. No aspecto mais literal, ele podia ser descrito como um fenômeno meteorológico de grande magnitude: tinha uma voz de trovão, sua presença era uma descarga elétrica nos ambientes e ele nos deixava molhados nas noitadas em que fizemos juntos, fosse em banhos de bebida ou pingando de suor. Como ele mesmo ou como Katylene, Dani era uma chuva de meteoros capaz de extinguir dinossauros e mudar o clima da Terra.

A expressão tempestade perfeita é um clichê que também descreve, subjetivamente, um “evento não-favorável agravado por uma rara combinação de circunstâncias, transformando-se em um desastre.” Ou seja, o pior cenário possível, resultado de uma inusitada confluência de fatores. No caso dele, some inteligência, sensibilidade, fama, noite, família e tsunamis emocionais. Dani era um vulcão em constante erupção.

Passei as semanas de sua internação chorando por lembrar de quanto ele nos fez rir. Ele era assim: intenso para o bem e para o mal. É muito difícil escrever sobre a morte de um amigo, ou mesmo de um conhecido de trabalho. Melhor quanto há oportunidade de homenagear ambos em vida, mas de qualquer forma esse texto deixa registradas a sua importância e as boas memórias que ele deixou em sua passagem por nossas vidas.

Dani teve uma relação distante dos pais, mas uma relação mais próxima com o avô e a tia maternos. Morou entre Rio e Brasília antes de mudar para São Paulo com vinte e poucos anos, e sempre foi uma pessoa da balada. Bebia caipirinha de jarra nos inferninhos cariocas ou o famoso drink Diabo Verde nos bares do DF, em que o único ingrediente conhecido é o licor de menta, que dá a cor. Por aqui, pegou uma época importante das boites do Centro, pós-Vegas, como Gloria, Lions, Yacht. Frequentava todo alfabeto da noite gay: Blue Space, Level, Danger, Tunnel…

Travestido de Katylene, ficou famoso muito cedo com seu humor debochado que combinava muito bem com um momento muito importante da internet, quando o acesso migrava do computador para os celulares, na virada dos anos 2010. Seu processo criativo era basicamente o de um programa ao vivo. Ele marcava um esquenta em casa e ficava comentando em tempo real pelo Twitter o que estavam bebendo, o que estavam assistindo na TV, as músicas que estavam tocando, onde iam dançar e depois quem pegou quem. Quase um BBB underground, mais jovem e dinâmico.

Os posts mais divertidos do blog da Katylene eram feitos em tardes e noites assim ou no day after, com a língua solta e o rabo aceso. A mesma temperatura de cobertura ao vivo dos bastidores acontecia em eventos especiais como Oscar ou as semanas de moda, e em comentários apimentados sobre o noticiário de celebridades… Tudo isso sem dar a cara à tapa. E mesmo depois de assumir a identidade, Dani ainda falava por meio de um avatar. Isso quando ainda nem se falava em influenciadores digitais (ou em Magalu.)

Paradoxalmente, a personagem da Katylene e o manto do anonimato o encorajavam a ficar mais à vontade de ser ele mesmo e escrever na internet as bobagens que ele pensava. Daquele jeito que só o Dani falava. Só que aos poucos ele começou a ser convidado e frequentar os eventos, ficar amigo das pessoas que ele tinha como assunto e mostrar a própria cara. Com o tempo a gente já não conseguia mais diferenciar quem era Katylene e quem era Dani nas redes sociais. E o álcool sempre foi o lubrificante usado para reduzir o atrito entre as duas personas.

Ele teve várias oportunidades de expandir o projeto como negócio _Pânico, MTV ou Band com a Adriane Galisteu. Mas sempre que era preciso que Dani se apresentasse como ele mesmo, ele travava. Como se ele só conseguisse evocar a Katylene se houvesse o ritual do adolescente bebendo em casa e fazendo comentários atrás do computador. Mesmo como DJ e animador de festas, que foi uma atividade que ele desempenhava bem pois era parte de sua rotina, ele dava uma de Tim Maia vez ou outra e sumia quando era pressionado a honrar compromissos.

Nos conhecemos pela internet, fervendo pelo Twitter, há mais de 10 anos. Nos aproximamos nas festas na casa da Julia Petit. Um ponto em comum era Mari Inbar, com quem Dani começou na internet com o blog Papel Pobre, antes deles se separarem para ele seguir com a Katylene e ela trabalhando no Petiscos comigo. Eu passei a fazer parte do elenco fixo da Balada Mixta, que ele promovia na Funhouse com o Pedro Beck. Nessa época formamos uma turma que se encontrava regularmente em uma mistura de almoços, flash-mobs e live tweeting, que a gente apelidou de #BahiaDay. Somos amigos até hoje.

Ele nunca foi uma pessoa discreta, suave, comedida. À sua forma era um pouco tímido, um bebezão de 1,90m que precisava de carinho e que vivia pendurado nos amigos, enchendo todo mundo de abraços e beijos melados. O estilo super moderno das tatuagens, dos alargadores, do corte moicano, das pólos esportivas e os acessórios infantilizados estilo Jeremy Scott eram ainda uma camada extra de sua personalidade. Mais uma de suas muitas fantasias. Da mesma forma como seu apê da alameda Lorena era decorado com suas coleções: de DVDs, de bonecos Funko, de polaroids de piroca de seus casos furtivos durante as bebedeiras.

É muito triste pensar que o corpo de uma pessoa pode pifar aos 32 anos dessa maneira. Nas últimas semanas, inconscientemente, criou-se uma rede de apoio entre os amigos em torno dele como se fosse mais uma de suas reuniões. Torcemos por ele mesmo sabendo das consequências de tudo o que a gente viu acontecer na nossa frente.

É importante sim falar sobre dependência química quando enfrentamos uma situação como essa. Principalmente para tentar entender o que dá pra fazer nesses casos e também o que não dá. Na internet, Katylene sempre vai ser uma estrela. Na vida, o Dani era indomável como o vento. Um furacão. Um sopro em nossas vidas. Adeus, amigo querido.

PS.: Nada mais a sua cara do que no dia de sua morte virar piada da Bianca Del Rio, uma das melhores de Ru Paul’s Drag Race, que aparentemente foi confundida por um site brasileiro com a Katylene “original.” Dani foi enterrado no domingo (10.01), coberto por uma bandeira das Spice Girls.

This Post Has One Comment
  1. Me chamo Roberto, gostei muito do seu site e conteúdo,
    e até salvei aqui nos Favoritos para ler com calma outras
    postagens depois.

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