O figurino de Chernobyl
Parecia impossível que, na semana de encerramento de Game of Thrones, a minissérie documental Chernobyl (em português, Tchernóbil), sobre um acidente nuclear ocorrido em meados dos anos 1980 na antiga União Soviética, conquistaria o posto do programa de TV melhor avaliado no site especializado IMDB (Internet Movie Data Base).
Com apenas cinco episódios e poucos efeitos especiais, a avaliação de Chernobyl pelos espectadores ultrapassou outras séries muito mais famosas como a própria novela fantasiosa de Westeros e a até agora unânime Breaking Bad, e mesmo outros dramas históricos como The Crown (sobre a Rainha da Inglaterra) e American Crime Story (The People vs OJ Simpson e The Assassination of Gianni Versace).
Compare figurino de Robert De Niro em Cabo do Medo e estética da Prada
Poucos ocidentais viajavam para a URSS naqueles tempos… E muito foi perdido por conta do acidente. Então, além de chamar atenção pelo cuidado com a caracterização e precisão histórica, Chernobyl oferece uma versão praticamente inédita do que aconteceu antes e depois do maior acidente nuclear da humanidade.
Por isso, vale ler os tweets do jornalista esportivo russo Slava Malamud, que viveu lá nessa época e descreve pequenos detalhes que fazem toda diferença, como o teto baixo das casas, os papéis de parede, as babushkas, as sementes de girassol como aperitivo e até utensílios de cozinha que só lá e naquela época poderiam ser encontrados.
No figurino assinado por Odile Dicks-Mireaux, percebe-se as nuances das relações de poder de um guarda-roupa muito diferente do europeu. Vemos os uniformizados ternos com gravatas regimentais dos membros do governo, a moda parada no tempo dos figurantes com colorido dos anos 1970 e os uniformes propriamente ditos dos trabalhadores da usina e das fábricas, cientistas, bombeiros, soldados, voluntários, biorobôs… Óculos grandes e mal ajeitados também são grandes sinalizadores de onde estão.
Mais do que desenhar a imagem congelada no tempo, como um raio-X, Chernobyl toca num assunto importante para os dias de hoje, nessa era da pós-verdade: como a manipulação de informação pode se perigosa, principalmente se for usada como arma governamental para impor a sua versão dos fatos. Muito propício discutir isso nos mandatos dos atuais presidentes do Brasil e dos EUA, que pregam a cultura de negar evidências científicas se baseando em mentiras e omissões.
Não existia internet naquela época, e as autoridades locais cortaram as linhas telefônicas para evitar a disseminação de dados, protegendo a indústria de energia que era um importante sinal de poder dos russos _além da usina nuclear, podemos ver a relevância & arrogância dos mineiros quando são convocados a ajudar.
Foi então o boca a boca e os canais dos “inimigos” ocidentais que se levantaram contra a propaganda soviética para fazer os primeiros alertas sobre os perigos da radiação. As TVs estatais russas demoraram 18 dias para noticiar o fato apropriadamente, depois de serem pressionadas por outros países europeus que começaram a perceber a radioatividade no ar. As roupas, a interpretação e a tensão entre os poderes dão o tempero da série, além da importância do documento em si.
Como disse Slava Malamud: “Não é que Chernobyl seja mais realista do que qualquer outra série ou filme sobre a Rússia, é que é mais realista do que qualquer coisa que os russos fizeram sobre si mesmos, pelo menos sobre este tema. E não estou exagerando”. No fim, Chernobyl não é sobre física nuclear ou sobre o acidente em si, é sobre individual versus coletivo e o papel de cada um na comunidade.
Principalmente, é sobre registrar o capital humano que fez parte disso tudo. E o figurino tem grande parte nisso. Assista que vale a pena!