Use Aurum, de Augusto Ribeiro

Use Aurum

Augusto Ribeiro poderia ser conhecido somente por seu trabalho criativo com estampas e formas, tanto na sua marca de roupas Use Aurum quanto no estúdio de estamparia Studio Aurum Brasil. Suas criações confortáveis são um abraço aconchegante nesses dias quarentenados. É uma bandeira de “brasilidade”, vibrantemente representada nos seus desenhos e na cartela de cores.

Além disso, porém, vai ser sempre lembrado como o exemplo das dificuldades que é ser um estilista negro no país, desde a formação, a falta de referências e do reconhecimento profissional. Vale lembrar também a entrevista que fiz com o estilista Otávio Augusto. Por tudo isso, pedi para ele contar sua história, transcrita abaixo a partir de uma conversa pelo Whatsapp. A palavra a seguir é de Augusto Ribeiro.

Formação e experiências pré-Aurum

Sempre fui muito criativo, desde pequeno. Nasci em São Paulo, na Santa Cecília, mas minha mãe logo se mudou pra Zona Norte, então eu cresci aqui e é onde eu moro hoje, de novo. Já brincava com Barbies e tudo, mas com 16 anos fiz um curso de produção de moda no Senac e esse foi o primeiro contato com a moda que eu tive na vida.

Gostei bastante e já começou pintar pra mim nessa época uma vontade de fazer faculdade de moda. Eu tinha uma dúvida entre fazer moda ou teatro. E a minha mãe disse que me ajudaria, como sempre. Então decidi por moda e entrei na faculdade logo depois do colegial.

Meu primeiro emprego foi no McDonald’s, eu trabalhava de dia. E de noite eu ia pra faculdade de moda, às vezes com a roupa do uniforme e eu falava: “Tô na moda, porque o uniforme é feito pelo Alexandre Herchcovitch, então, não vou nem ligar…” E eu ia, realmente, com a roupa do McDonald’s. Depois, trabalhei no Banco do Brasil.

Meu primeiro emprego na área de moda foi em uma estamparia, em 2008. Pra mim foi maravilhoso, porque trabalhar no McDonald’s ou no Banco do Brasil não tinha nada a ver comigo. E trabalhar nessa estamparia pra mim foi um grande sonho.

São dois processos diferentes: tem a estamparia digital e tem também a estamparia de cilindro, que é um processo superantigo em que o desenho é gravado em vários cilindros como se fossem um negativo de máquina. Eles fazem um carimbo mesmo, redondo e grande, de 1,70m, e o desenho é dividido em cores. Achei maravilhoso e na primeira vez já eu lembro de ter ficado apaixonado.

A primeira estampa que eu desenvolvi  foi para uma coleção. E o primeiro cliente que comprou essa estampa foi a Renner. Era uma estampa de pavão, na época apareceu no Big Brother e tal. E quando eu vi estampando o meu desenho no cilindro, que produz mais de mil metros em menos de 30 minutos, eu falei: é isso que eu quero fazer da vida. Porque eu amo a indústria, né? Eu sou apaixonado em todo processo que é industrial.

Eu fiquei nessa estamparia alguns anos, entrei em 2008 e fiquei lá até mais ou menos 2013. Desenvolvi mais de dois mil desenhos. Então, sobre a minha formação, costumo dizer que eu sou formado em Brás. Porque essa estamparia ficava no Brás e eu aprendi muito sobre o que era comercial.

Me formei na faculdade de moda em 2011 e o TCC era ou de estamparia ou de moda, de roupa, de vestuário. E eu quis fazer um que tivesse os dois. E aí eu fiz um TCC com estampas que eram 3D, então na apresentação todo mundo usou óculos 3D, e as estampas pulavam da roupa e se mexiam, isso foi uma experiência muito legal.

 

Estampas: Studio Aurum Brasil

Foi quando abri o Studio Aurum Brasil, que significa ouro. É o metal que rege o signo de leão, por isso que o logotipo da empresa é um leão. É o metal dos alquimistas, que transformam qualquer metal em ouro. Então, a ideia é transformar ideias, muitas vezes até soltas, e referências em algo valioso pras pessoas, seja em estampa, que vai valorizar a marca de um cliente, ou em roupas também.

Eu já tinha feito estampa pra muita gente: C&A, Renner, Riachuelo, e muitos magazines. Fiz estampa para um pessoal que desfilava: na Casa de Criadores teve o Danilo Costa e no São Paulo Fashion Week teve Samuel Cirnansck e Cia Marítima. Já estava com a mão legal pra pra meu próprio negócio. Então, eu resolvi pedir demissão da estamparia e realmente abrir o meu estúdio, o Studio Aurum Brasil. Em 2012 eu saí da estamparia pra fazer essa carreira solo. Deu super certo. Tem o tanto que tenho ele até hoje.

Eu sou estilista hoje, mas como designer de estamparia eu tenho muito mais experiência. A minha primeira coleção de roupas foi logo que eu me formei, em 2011, foi uma coleção supercolorida. Pensei, nossa, acho que só vai vender pro público gay. E aí eu consegui três lojas pra vender a Use Aurum, consegui duas ali na na Vieira de Carvalho e uma na Frei Caneca.

Teve uma vez que eu fiz uma coleção de regatas supercoloridas. Deixei essas regatas e quando foi na segunda-feira a dona da loja me ligou falando que precisava de mais peças porque tinha vendido tudo. Falei, meu, é isso. Só que o Studio Aurum Brasil sempre foi muito forte e eu não conseguia me dedicar aos dois. Então, resolvi me dedicar só ao estúdio de estampas que foi por onde realmente conquistei as coisas que eu queria.

Em 2019 eu abri o estúdio no Bom Retiro, com uma equipe grande, cinco pessoas desenhando, atendendo todo o pessoal do Bom Retiro, do Brás. De 2014 a 2019 eu tinha participado da feira têxtil na Première Vision em Paris, com meu estúdio de estampas. Então, consegui atender marcas internacionais, atendi marcas da Alemanha, atendi a Desigual, que é espanhola. Foi muito legal. Atendi a Zara. Então, o estúdio de estampas sempre foi a minha base.

 

Roupas: Use Aurum

Foi nessa época que eu retomei a marca de roupas, Use Aurum, já que eu tava com uma equipe grande fazendo design, então eu fui cuidar da confecção e fui direcionando esse pessoal aqui na estamparia. Então, em 2019, fiz uma super coleção de roupas que funcionou, que vendeu, já nos modelos atuais. Depois ainda fiz mais quatro coleções pela Use Aurum chamadas: Sonhadores, Rio do Mar e também uma coleção só de gravataria.

Atualmente, o valor que eu quero passar com a minha marca é de uma roupa atemporal, ao mesmo tempo a gente vive um momento de pandemia, que não é tão simples para as pessoas comprarem roupas nesse momento. Eu faço uma produção que é pequena e mais exclusiva, que dura uns cinco meses, e depois eu faço algum tipo de promoção, quando a coleção, realmente já está no fim no quesito de grade, de ter menos tamanhos. Com esse dinheiro que entra, literalmente, eu lanço uma outra coleção.

Eu considero a Use Aurum hoje uma marca conceitual, no sentido de que eu trago alguma coisa que é diferente, mas uma roupa que tem um valor acessível. De um modo geral é uma roupa comercial também, é uma roupa que é fácil de usar. Não é uma roupa que você vai só sair, ou que é só um pijama, é uma roupa que você consegue transitar entre várias situações.

E tem a questão que eu tô aprimorando sempre, que é a modelagem e a questão da grade, para servir várias pessoas. A minha mãe tem 60 anos, ela usa minha roupa. O meu amigo tem, sei lá, 25 e ele também usa essa roupa. Todo mundo pode usar. É claro que eu sempre recebo críticas ali na DM sobre esse assunto…

Antes de antes de ser uma marca pra todos os corpos, ela é uma marca que é feita por um estilista negro, né? Sou eu, um estilista onde eu estou em protagonismo, é sobre a minha vivência, sobre a minha história, sobre as minhas referências. Então, eu trago a estamparia, eu trago a cor. E aos poucos eu vou essa questão do molde, da inclusão de outros públicos dentro da marca.

Com o meu estúdio de estampas, eu acabo produzindo muitas bandeiras de tecido. Muitos desenhos são vendidos para as marcas e tecelagens, mas também muitos desenhos são vendidos pra empresas que estão fora de São Paulo, é vendido online. Então, eu comecei, ao longo dos anos, juntar muito tecido, tecido estampado, tecidos com desenhos superbonitos.

Encontrei uma fábrica em Minas Gerais que topou confeccionar pra mim algumas mochilas. Então eu pego esses tecidos que teoricamente seriam descartados do estúdio, e faço mochilas com ele. As mochilas são super-resistentes, ela é toda dublada, ela é superfuncional também, com bolsos laterais, bolsos dianteiros. E fica um trabalho superbonito, porque a gente mistura as estampas, eu dou a orientação pra eles, assim de seguir sempre por cor ou por tipo de elemento. E eles montam as mochilas e fica incrível.

Uma mochila dura mais ou menos sem nenhum tipo de de estrago, no mínimo três, quatro anos. A primeira vez, eu fiz com alguns retalhos até de couro que eu tinha, porque eu uso todos materiais, inclusive, da marca e eu já tenho ela tem cinco anos. Então, assim, é um trabalho super bonito e que também aproveita os tecidos que teoricamente seriam descartados.

No estúdio trabalha eu, tanto na parte de estampas como na parte de roupas, e a minha assistente Bruna. Nós dois nos organizamos pra fazer tudo, antes eu tinha uma equipe aí de cinco pessoas, mas hoje em dia, sou só eu e a Bruna, mas assim que terminar esse momento que a gente tá vivendo, de reclusão, eu pretendo voltar com a equipe porque é muito bom, né? Eu gosto, eu sou professor também, então gosto muito de ensinar, de capacitar as pessoas pra que elas saiam do estúdio podendo eh trabalhar em outros lugares, estando apta pra trabalhar em outras empresas.

Moda e racismo

Sobre a questão de ser um estilista negro, eu acho que esse é um assunto que precisa estar em pauta. Desde quando eu entrei no curso de produção de moda, eu fiz pós-graduação em história da arte e, na minha vida pessoal, isso é algo que toca no meu âmago.

Até a oitava série, eu estudei em escola pública. Então, tinha muitas pessoas negras. Depois eu fui estudar no Objetivo, uma escola particular, e eu era o único negro do meu período. Na faculdade, eu era o único negro do meu período. E eu nunca tive referências de estilistas negros. Não porque eu não encontrei, mas simplesmente porque não existia.

A gente tem hoje aqui no Brasil o Isaac Silva, que faz um trabalho incrível e que, querendo ou não, é, além do trabalho dele como estilista, ele acaba sendo uma referência pra pessoas negras que querem estar na moda, porque se a gente não se vê representado, a gente acha que a gente não pode ocupar esse lugar.

Quando eu me dei conta disso, eu entendi que a minha marca, antes de ser uma marca que quer englobar todos os corpos, que quer falar com várias pessoas, ela é uma marca de um estilista negro, brasileiro, de classe C, que estudou em escola pública. Fiz faculdade, claro, com a ajuda da minha mãe, mas tive que pagar a faculdade, né? Então, ser um estilista negro, pra mim, é um papel muito importante.

Quando eu me mostro e quando eu falo ali, eu percebo que o público que segue a Use Aurum, apesar de ser um público diverso, tem muitos meninos negros. E mulheres também, que seguem a marca e depois vem me seguir no pessoal, porque enfim, eles querem estar conectados com essa referência de que eu sou negro, eu posso ocupar esse lugar.

Eu demorei muito tempo pra perceber que eu era negro, eu fui perceber quando eu comecei a trabalhar, que as pessoas me olhavam diferente, na vida adulta. Quando comecei a dirigir, comecei a perceber que eu era sempre parado pela polícia. Eu fui casado por um tempo com um homem branco, então quando ele tava dirigindo, tava tudo certo, mesmo que que ele tivesse alcoolizado, ou eu, enfim, mas quando eu pegava o carro pra dirigir, a gente era parado.

Então, ocupar esse lugar e mostrar que sou eu, que eu ocupo esse lugar, é importante. É pra servir de inspiração, pros meninos, pras meninas que querem ocupar esse lugar de moda e que ainda assim, mesmo com todo o movimento que a gente vê hoje (a revista Elle tá super legal, mostrando esse público diverso já tem um tempo, e a própria Vogue tem passado por essa transformação de diversas maneiras) é muito importante, né?

Na minha formação como estilista, como designer, em moda, a minha referência de negro era a Naomi Campbell, Alek Wek, enfim, modelos, mas não estilistas, né? E, hoje, a gente tem o Virgil Abloh também ali na Louis Vuitton, ocupando esse lugar, ele é o criador de uma marca que Deus e o mundo copiou, a Offwhite. Então, eu acho muito importante que o homem e a mulher negros ocupem todos os lugares possíveis, seja na política, seja no direito e que a gente tenha visibilidade.

O Brasil é um país em que mais de 50% da população é negra. E até pouco tempo atrás a gente não via tantos negros. A família margarina era a família perfeita com suco de laranja na mesa, mas branca. Quando você pergunta despretensiosamente para algumas pessoas em determinados grupos: Quem são as belezas que elas admiram? Essas belezas são brancas, né? Quem são as pessoas são pessoas brancas. Então, a gente precisa ocupar esses lugares.

Eu fiz uma roupa pro rapper Rael se apresentar no prêmio Multishow, foi super legal, a gente não chegou a conversar diretamente, mas quem me chamou pra fazer essa roupa foi uma figurinista negra. Existe também dentro do meu propósito que a comunidade negra se apoie dentro da moda. Foi uma figurinista negra que me chamou pra fazer a roupa eu tenho alguns parceiros de produção que são negros, o stylist Caio Sobral, eh tem a Babi Louise, que também é negra, que inclusive fez uma produção das minhas roupas pro documentário do Emicida, que é negro.

A gente não quer excluir o branco ou as outras raças, mas a gente também ter o nosso lugar e ter o nosso reconhecimento. E querendo ou não mesmo que essa não seja a minha única bandeira, porque a minha bandeira é sobre a criatividade, a verdade, a transparência e sobre o que a gente coloca no mundo mas é muito importante que se crie essa comunidade dos negros ajudando os negros. Como designer de estampas, gostaria muito de fazer uma estampa pro Isaac Silva, que é um estilista negro.

Como criador de estampas, nas empresas que eu entro,  os estilistas, os coordenadores, os gerentes são brancos. As pessoas falam comigo no telefone, quando elas não me tem no WhatsApp, de um modo geral, com o nome Augusto imaginam alguém mais velho. Quando eu chego, eu sou um cara pequeno, negro. E as pessoas sempre sempre falam: “Eu te imaginei diferente.” Provavelmente, elas me imaginaram branco.

Eu lembro até hoje, uma temporada que eu fiz de venda de estampas no Sul, do país e a maioria das pessoas lá são brancas e, enfim, e daí teve uma cliente específica que eu fui atender lá na casa dela, uma mansão, assim, gigantesca, dona de várias marcas. E o que eu percebo que as pessoas notam em mim, antes do meu trabalho, antes de quem eu sou, antes do talento, é o fato deu ser negro.

Ela demorou pra pegar uma confiança em mim e depois que ela pegou, foi tudo certo, não teve nenhum tipo de fala racista, mas ela demorou pra confiar em mim. Quando eu tô numa mesa com pessoas, não importa quem sejam essas pessoas: mais novas, mais velhas, homens, mulheres… Se o garçom vem entregar a conta, ele não entrega pra mim, ele entrega pra outra pessoa. Mesmo que quem vá pagar a conta sou eu.

A minha marca é sobre isso também, o meu propósito também é sobre isso e apesar de eu não estar sempre falando. São as atitudes e são os exemplos. Eu, diretamente, nunca sofri nenhum tipo de racismo, mas indiretamente sim, em mercado, em situações como eu disse, de ir na casa de algum cliente. Que é um racismo indireto, mas que existe. Eu procuro mostrar isso pelo exemplo. E eu não me considero uma pessoa militante no sentido literal da palavra, de falar, porque eu mostro como exemplo, eu mostro sendo quem eu sou e a minha marca, ela também existe pra isso.

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