Papo de moda com o motorista

Hitchcock

A gente nunca acredita que vai ter um papo de moda com o motorista de aplicativo, mas eu fui surpreendido por ideias bem particulares acerca dos homens e a relação com moda e estilo e os ambientes de trabalho versus luta de classe. O texto a seguir é uma transcrição do meu papo de moda com o motorista (devidamente autorizado por ele a ser publicado) e veja que curioso o que ele tem a dizer.

A visão masculina da moda nunca foi compreendida, sempre foi vista como algo negativo. É a mulher que faz a compra de roupas do homem. A gente sempre ouve algo do tipo: “Você usa o mesmo paletó preto desde que casamos”. A mulher quer renovar o guarda-roupa do homem, mas ele se aferra a certos modelos que se sente bem. Como o Ziraldo, que tinha o colete como sua marca. Se um cara gostar de um suéter ele vai usar o mesmo suéter por 50 anos. A menina olha para o futuro; homem para o passado, olha para o pai dele… A mulher experimenta muito mais, ela recicla, ela se cansa, vai atrás de coisas novas e tal.

A questão não é mudar [o estilo], mas compreender e trabalhar com produtos que atendam este público. Se você analisa os filmes do Alfred Hitchcock, dos anos 1950 e 60, e prestar atenção nos ternos, é algo que alguém poderia usar tranquilamente nas ruas. Talvez a lapela esteja um pouco mais estreita, mas quem repara nisso é só o pessoal da moda. Você pode entrar num bar hoje com um paletó dos anos 1960. Um modelo comum, claro que não vou forçar um xadrez, né?

Pierre Cardin conseguiu acrescentar uma história interessante que foi o blazer com jeans. Foi uma das coisas que ele conseguiu trazer pra cá. O jeans era considerado roupa do trabalhador ou do revoltado. O executivo e o pessoal no escritório não se adaptavam com jeans. Aí ele criou um blazer azul para usar com uma calça jeans boa, mais formal. Foi uma revolução.

Mas meu papo de moda com o motorista foi muito além de estilo pessoal, ele falou também do papel social e do aspecto segregador que pode alcançar. Veja mais a seguir do meu papo de moda com o motorista.

Um elemento que acho curioso na moda é o da segregação. Paletó preto com gravata vermelha e camisa branca ou azul é roupa de porteiro. Os trajes com gravata estão ficando para o pessoal do operacional. Nem os bancos estão mais exigindo. A nossa galera no ponto compartilhado é vista com viés neste mercado. É curiosíssimo ver os taxistas com calça preta e camisa branca. A prefeitura pediu um código de vestimenta e espera-se isso da gente. É essa a moda da segregação. O papel do uniforme se expressa muito bem quando você tem que identificar as pessoas em grupo. Num evento, você sabe a quem procurar se precisar de um segurança ou garçom. O que me incomodam são os babados e frisados, que fica meio vitoriano, do século passado.

Nessa questão de segregação, a moda talvez nem seja o aspecto mais cruel, mas somos um dos poucos países que separa elevador de serviço e social. Terminei a dois anos um curso de nível superior. Consegui uma bolsa do Prouni e me formei como arquiteto. Nos anos de faculdade eu não tive vida social, pois estava divorciado e aproveitei esse momento de solidão. Sai muito impressionado com a compreensão de um Brasil segregador. A planta de um apartamento é uma coisa reveladora. Além do elevador de serviço, tem o quarto de empregada que é localizado junto à lavanderia, próximo à copa e à cozinha. Há uma porta muitas vezes desse setor para a sala e para o living. Ou seja, a pessoa pode passar semanas no apartamento sem entrar na sala de jantar ou conviver com a família. É um desenho cruel.

Em empresas, muitas vezes é no subterrâneo do prédio onde ficam faxineiras, porteiros… Ali eles ficam à vontade, dão gargalhadas entre eles. Quando você dá espaço para a pessoa se sentir à vontade, ela pode rir em voz alta e brincar com o colega. É curioso que eles criam códigos entre eles muito bem caracterizados e ao mesmo tempo que não interfira na vida do patrão ou na rotina da empresa. Então, dá para fazer essa comparação do estilo, pois você que trabalha com moda, com o espaço, por que estudei arquitetura. O ápice dessa segregação para mim eu percebi em um prédio da Apeoesp, onde fomos fazer um levantamento, na rua Vergueiro. É um prédio com apoio estrutural no meio e que abre como um cálice, por isso é chamado bolo de noiva. No subterrâneo tem um corredor que faz uma curva para acompanhar o seu desenho redondo. No fundo dessa longa curva, atrás de um auditório, fica a sala de manutenção que era o ninho desse pessoal do operacional. Percebi que o circuito interno de TV ficava na ponta desse corredor que ficava em curva. Ou seja, era o ponto cego! Uniforme, terno e gravata são isso: pontos cegos.

Vou ficar sempre de olho em outro papo de moda com o motorista ou qualquer pessoa que não seja da nossa área para compartilhar aqui!

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