SPFWN54: moda não acontece só na passarela

Bold Strap

A primeira temporada de moda que cobri profissionalmente foi por coincidência a primeira edição que o São Paulo Fashion Week passou a usar esse nome e ocupar o espaço da Bienal, na virada pros anos 2000. De lá pra cá, vimos muitas vezes mudar as dinâmicas de relacionamento ali dentro, entre anunciantes, marcas, imprensa e convidados. Nunca houve mudanças tão acentuadas como nessa edição SPFWN54. (Ou pode ser também que eu tenha mudado meu olhar sobre o evento…)

Essa foi a primeira edição predominantemente presencial desde o início da quarentena, e já era esperado esse efeito rebote: as pessoas estão querendo sair de casa, se arrumar e encontrar pessoas para compartilhar selfies e perdigotos. Com a novidade da venda de ingresso nesse SPFWN54, ficou a impressão de estarmos revivendo os primeiros anos da semana de moda. 

Assim como antigamente, o público foi super montado e os espaços dos patrocinadores viraram baladas, com lounges cheios, música alta, bebidas alcoólicas e distribuição de brindes. Teve de novo o frisson do deslumbramento, pra usar um termo da época. Da mesma forma, teve a “polêmica” reciclada em ter muitas celebridades nos desfiles e se esse é um recurso pra agradar os fãs e distrair a atenção da coleção. (A resposta é a mesma de antes: depende.)

A diferença é que antes era a época dos convidados VIP, da imprensa especializada e dos correspondentes internacionais. Era também a época das pessoas essencialmente brancas, cisgêneras e magras na plateia, nos bastidores e nas passarelas _salvo raríssimas exceções. Hoje não é mais assim… 

Desde os primeiros anos de SPFW, em toda temporada havia uma manifestação de movimentos negros pedindo mais diversidade na passarela. Demorou pra que essa demanda fosse atendida, mas já faz alguns anos que a direção do evento tem uma recomendação de que as marcas incluam modelos negros no casting. Mais recentemente, se tornou uma obrigação assinada em papel que ao menos 50% dos selecionados para desfilar sejam pessoas não-brancas. 

Além da passarela, iniciativas mais recentes de atrair marcas de estilistas negros refletiram não apenas nas estéticas das coleções apresentadas nesse SPFWN54 e nas propostas de estilo para diversos nichos, mas na própria lista de convidados pro desfile e na equipe contratada. É notável a diferença do público em geral. 

Vemos agora pessoas pretas, indígenas, gordas, PCDs e de todas expressões de gênero fazendo parte também desse rolê, como pagantes e convidados das marcas, e também como designers, estrelas ou profissionais dos bastidores. Teve até um Pai de Santo desfilando dessa vez. Não é  um mérito do SPFW, mas de toda a sociedade.

Pode melhorar? Sempre! Mas é preciso registrar essa mudança de agora. Principalmente para que o meu entorno compreenda que as dinâmicas são outras. E que tem espaço pra todo mundo. É o que já víamos na Casa de Criadores, de fato, mas a diferença é justamente essa: um é underground e o outro é mainstream. É preciso haver esse cruzamento.

Não sejamos as jornalistas indignadas porque não estamos na primeira fila o tempo todo. Os pagantes do SPFWN54, aliás, entravam antes e tinham mais lugares reservados do que a imprensa. Não faz mais sentido também estabelecer um nível parisiense para as críticas, sem considerar o histórico, as limitações e o lugar que cada marca ocupa no evento e na sua comunidade. Não façamos comentários do tipo “não conheço mais ninguém” ou “a moda não é mais a mesma”, nem que seja “cá entre nós”.

Quando eu comecei nessa profissão, eu tive que conquistar os convites convencendo as assessorias que o online era o futuro, competindo com as revistas e jornais impressos. Em seguida, essa transição foi entre os sites e as blogueiras. Depois vieram os influencers. Teve épocas em que nem público tinha pra encher a plateia. 

No desfile do projeto Cria Costura, em que o estilista Jefferson de Assis coordena um projeto de capacitação de mulheres periféricas, sentei de frente pras próprias costureiras, e cada uma a sua vez ficava gritando “eu que fiz esse!” a cada look que entrava. Esse cena seria inimaginável alguns anos atrás, mas foi uma delícia vibrar com elas. 

Nesses 20 e tantos anos, tanto eu quanto o evento amadurecemos bastante. Mas isso não pode tirar o olhar para a novidade que nos move e que é essencial para esse mercado. O Planeta Fashion não gira, ele capota. E quanto mais a gente estiver aberto a mudanças, menos a gente sofre com elas. Aceita que dói menos, como dizem por aí.

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