Live, Work, Pose!

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Comecei com baixas expectativas a assistir a “Pose”, o seriado sobre os bailes de vogue em NY na virada dos anos 1990 que serviram como base para muito de cultura gay que vemos hoje: a montação, a chochação, a entrada no mundo pop e a relação próxima da figura da bicha-amiga com suas divas. Sabe tipo a RuPaul? O programa faz um contraste também com os brancos privilegiados yuppies, as famílias suburbanas e os cidadãos de bem.

Torci o nariz no começo quando soube que era produzida por Ryan Murphy. Tudo o que ele faz tem aquele filtro de novela da Globo, e fiquei com a impressão que ele deixaria pasteurizado algo em que a graça era ser cru. Os concursos na pista de dança eram justamente sobre quem conseguia maquiar a dura realidade de ser bicha preta segregada, imprimindo normalidade por meio de maquiagem, moda e pose. Não é de fato uma produção que conquista por retratar fielmente a realidade do underground. O oposto: é delicioso quando entra no mundo do hedonismo, da fantasia, da coreografia, do figurino e da transformação.

Vale assistir antes a “Paris Is Burning”, documentário que mostra os verdadeiros dançarinos, as mães e suas famílias, a estrutura das casas e o papel de cada um nas competições. Como Madonna (por conta do clipe de “Vogue” e a relação com os bailarinos mostrada em “Na Cama com Madonna” e mais tarde em “Strike a Pose”), a diretora Jennie Livingstone foi criticada na época por se apropriar da história desse coletivo e receber mais créditos que os próprios envolvidos. De fato, a situação delas é muito privilegiada, e mesmo apesar desse imbróglio ajudaram a jogar uma luz sobre esse grupo que não teve em vida o reconhecimento de sua arte.

Jennie Livingstone participou como consultora no desenvolvimento do seriado. E no primeiro episódio da segunda temporada de “Pose”, vemos o frisson com o lançamento de “Vogue” em 1990 e como isso deu esperança a eles em sair do submundo da noite e conseguir trabalhar e viver dignamente sendo gay, pobre, sem estudos e muitas vezes pego no espiral da epidemia de HIV e Aids que dizimou comunidades inteiras na época.

“Pose”, então, pode ter o papel de reparação histórica e de atualizar a imagem desse movimento que foi tão contestador ao mesmo tempo que tão livre e debochado. Ele mostra a fundo o quanto o reconhecimento era importante para eles como validação, mesmo que fosse somente apenas do próprio gueto.

Em “Pose”, Billy Porter está brilhante como Pray Tell, o MC dos bailes e dos concursos de vogueing. Literalmente brilhante: seu figurino é coberto por cristais, lantejoulas e metais. E ainda plumas, chapéus… É ele que dá a liga à trama, ao comandar os encontros em que aparecem todos os participantes no seu melhor momento. Além do figurino, é afetado no tom de voz (o ator é também cantor da Broadway) e no gestual.

O enorme elenco trans é outro destaque de “Pose” por sua rara beleza e rendem ótimos momentos quando Elektra Abundance, Blanca e Angel Evangelista então em tela. Um desbunde. Com o passar dos episódios, a série deixa de ser uma espécie de Malhação das pocs, em que tudo é belo e fervido, para levantar bandeiras de suas militâncias. Além de Madonna, a segunda temporada começa com um protesto em uma igreja por um tratamento mais eficaz para a epidemia de HIV e Aids. O próprio Pray Tell confronta a ausência de Elektra Abundance na manifestação, cobrando sua participação na comunidade.

Conversando com o Jackson Araujo sobre “Pose”, ele me recomendou uma entrevista que seu amigo, o diretor de cinema Karim Aïnouz, deu sobre o filme premiado em Cannes “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão. Nela, ele explica a importância da dramatização como forma de tocar em assuntos delicados para o grande público.

“O gênero melodrama foi muito utilizado nos anos 1950 como uma crítica da família, apresentando personagens afogados pelo mundo e que tentam por a cabeça fora d’água,” diz Karim, que cita o diretor alemão Doulglas Sirk, que costumava assistir na adolescência via Sessão da Tarde, a autora brasileira de novelas dos anos 1970 Janete Clair e a diretora Suzana Amaral, do filme “A Hora da Estrela”.

Com essa perspectiva, passou meu bode de ver o vogue e as bichas desprivilegiadas como protagonistas de uma novela. Passei a curtir a ideia de ver o reconhecimento desse movimento de resistência e luta por direitos, reconhecimento e respeito. Deu orgulho até.

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